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viagem da imaginação
A sala seguinte estava repleta de famosos, que se distinguiam das máquinas pelos defeitos humanos: condessa Kover-Duda, muito conhecida em toda a Europa e que tinha uma cara demasiado comprida, corpo deformado pela gordura, não conseguia parar de falar, num inglês macarrónico que os seus belos acompanhantes pareciam compreender totalmente; o socialite e milionário Juan de Alicante tinha à sua volta três louras cibernéticas e parecia absorto em pensamentos só dele; havia ainda um conde-barão, uma escritora da moda acompanhada do seu ghost-writer, um cavalheiro da indústria extremamente gordo. E, claro, eu, que não devia estar ali, se não fosse a circunstância de me terem dado santuário. A enorme sala era totalmente o oposto da anterior. Em vez de quadros clássicos imitados, as paredes tinham grandes reproduções de fotografias de objectos exóticos da retromania, que pequenos grupos de robôs apreciavam com vivo interesse: não se tratava de boas maneiras, mas notei que se interessavam pelos objectos, pois enquanto os olhavam não estavam a bajular humanos de fama, a fazer sala, por assim dizer, reparei nitidamente (e com grande surpresa minha) que eles apreciavam e discutiam entre si os ícones do passado. Reconheci alguns: os Mínimos, Darth Vader, um computador primitivo, a gravura de uma história de Jules Verne, o robô do Planeta Proibido, um ogre do Senhor dos Anéis, um cartaz de jazz, Marilyn Monroe. Passei ao lado de uma das máquinas, uma jovem belíssima, que se extasiava com uma imagem de Bambi. Não resisti a meter conversa:
“Um bocadinho infantil, não acha?” Ela sorriu, percebeu quem eu era, mas contrariou a minha opinião. Não, não achava, pelo contrário, nada infantil, apenas muito humano. Foi isto que ela disse. Uma robô com opiniões, nesse aspecto muito parecida com Norma.
Devo ter corado com aquele ‘nosso hóspede’ e fiz outras perguntas sobre a biblioteca, embora continuasse a não entender o objectivo do milionário. Palmer continuou naquele tom didáctico e lançou-se numa longa explicação sobre os livros que escolhia, os espécimes raros que procurava comprar, os critérios que seguia. A biblioteca já tinha mais de dez mil volumes, em apenas quatro temas diferentes. “Os livros são originais e os quadros são imitações”, disse eu, ainda pouco convencido. Foi Sombart quem rebateu a minha dúvida: “Não pode separar. Trata-se de tentar capturar o mistério insondável da beleza”.
“Isso seria um facto se o vosso pintor procurasse produzir quadros originais e não apenas imitações de estilos”. Sombart ponderou aquela minha objecção.
“Isso não teria qualquer função”, disse.
“Deixe-me reformular”, insisti. “Ele pinta magnificamente as obras de outros, por isso deve ser perfeitamente capaz de criar uma pintura sua, uma imagem única e que nunca existiu antes”.
“Sim, naturalmente, é capaz, mas não vejo a relevância”.
“Todos os quadros são de outros pintores”.
“Mas são suficientemente magníficos”, disse Sombart.
“E, no entanto, não possuem qualquer valor...”
“Suponho que terão um elevado valor para quem os olhar, pois são perfeitos. O valor, por assim dizer, está nas suas qualidades, que a cópia reproduz inteiramente”.
“Mas a imitação não tem alma”.
Houve uma pausa. Todos sorriram. “Teria resposta, se a alma existisse. Infelizmente, a sua hipótese é insatisfatória”, respondeu Sombart. Parecia sorrir, mas era simulação. Nessa altura, apontou para a sala de jantar e mudou de tom, dirigindo-se a mim:
“Deve estar esfomeado. Esta noite, foi preparado um verdadeiro banquete e terá a oportunidade de conhecer Brandes”. E, com a mão direita, Sombart fez um gesto largo, que era uma mistura de vénia, cumprimento e convite.
Caminhando no grande salão, passaram três figuras que se destacavam. Sombart apresentou os cavalheiros, disse-lhes quem eu era, e apresentou-lhes Norma, como se eles não soubessem quem ela era. O que parecia ser o mais importante chamava-se Professor Newton e os outros três eram menos relevantes, o médico de Brandes e o arquitecto responsável pelas colecções de livros. Este último, Palmer, tinha um trabalho extravagante de juntar colecções que nem deviam interessar ao proprietário do sanatório (livros de arte, romance francês do século XVIII, um núcleo de raridades sobre impérios extintos do Médio Oriente). Tinha outra função, a de reunir artefactos para o ‘museu do futuro‘. “Temos de lhe fazer uma visita guiada”, disse-me Palmer. Senti curiosidade e pensei que talvez encontrasse ali algumas curiosidades, mas optei por fazer uma conversa superficial, a picar Palmer com a inutilidade do seu trabalho. Para que servia reunir livros que ninguém precisava de ler, perguntei. Os textos podiam ser consultados em formatos digitais e os volumes em si não podiam de forma nenhuma interessar a Brandes, que tinha fama de ser um milionário excêntrico, mas pouco dado a coisas do espírito. Fazer aquela crítica na casa do homem que me podia ajudar foi uma imbecilidade, mas o meu interlocutor não levara a mal, pelo contrário, pareceu-me encantado com a possibilidade de justificar a sua tarefa: “Muitos novos-ricos criam colecções de livros com o objectivo de surpreender os visitantes ocasionais, mas esse nem é o caso de Brandes”. Palmer fez uma pausa, pareceu procurar a formulação correcta, só depois continuou: “Brandes é famoso por evitar os holofotes e o público, apesar de muitos famosos serem visita regular. O senhor não é famoso, mas tem uma boa recomendação e é nosso hóspede devido à sua situação particular. Garanto-lhe: a colecção de livros de Brandes é um genuíno esforço para salvar património da humanidade”.
A sala principal, de onde vinha toda a animação, parecia uma estação ferroviária. Estavam talvez trinta figuras e era difícil perceber o que faziam ali. Havia criados de libré e grupos de cerimónia em amena conversa. Andei por ali um bocado, sentindo a alcatifa e os olhares discretos. Agarrei um copo de vinho tinto e olhei, fascinado, para a colecção de pinturas. Sobre a chaminé, estava uma magnífica obra dominada por um céu de um profundo azul. Fiquei um pouco a contemplar o quadro e deixara de me preocupar com Norma, até ao momento em que ela interrompeu o nosso silêncio: “Nicolas Poussin, o funeral de Fócion”, disse ela.
“O quê?”
“O nome do quadro e do pintor. É uma cópia”. Nunca imaginara que ela pudesse saber alguma coisa sobre pintura, mas era natural que soubesse. No fundo, desconhecia os seus talentos. Foi mais ou menos nessa altura que se aproximou de nós um sujeito magro e elegante, obviamente funcionário, pelo menos assim o defini no meu íntimo, pois estava rodeado de funcionários, e parecia bizarro que estivessem a simular uma festa onde eu era o único verdadeiro, autêntico, convidado. O tipo apresentou-se, disse que se chamava Sombart. Sabia tudo sobre a nossa situação, cumprimentou-me com suavidade, o que não era apenas uma pose mecânica, mas algo de profundamente estudado e que tinha certa nobreza (sei que a frase pode parecer absurda, mas sim, esta é a expressão mais exacta). Intrigava-me a festa. Queria falar sobre Brandes, mas desviei o assunto: “Fale-me das pinturas...”, pedi. “São cópias”, respondeu Sombart. “O nosso especialista fabrica os pigmentos, prepara telas com fibras envelhecidas e usa uma técnica idêntica à do pintor original, até na pressão do próprio pincel ou a rapidez do movimento. Todos os quadros são iguais aos que pode encontrar no museu. O nosso mestre reproduz qualquer período. Enfim, se prefere uma explicação mais exacta, digamos que a luz reflectida pelas telas é idêntica à dos originais e, portanto, o seu efeito emocional deverá ser o mesmo”.
“Se não fossem falsos valeriam milhões”, disse eu.
“São reproduções exactas, nas cores, nos pigmentos, nas formas, nos próprios cheiros, a sensação é a mesma de se olhar para o original. Mas, enfim, estão aqui para serem vistos”, explicou Sombart, com o que me pareceu ser um toque de petulância, acrescentando de imediato: “Já viu o Bruegel? É magnífico”. Mostrou esse quadro e outros: tinham um Rembrandt, um Turner e vários impressionistas. Sombart conduzia-me pelo grande salão, onde passeavam outras figuras elegantes e perfeitas, imitando cavalheiros e senhoras, segurando na mão copos de vinho, outros fingindo conversar, como se aguardassem a sua vez de participar naquele teatro. Entre eles, esvoaçavam empregados de baixa hierarquia, distribuindo vinho e canapés.
E deixei-me mergulhar em conjecturas, pois sentia agora as alterações que Norma sofrera. Confrontada com a hipótese da sua mortalidade, ela tornara-se subitamente mais meiga ou suave, ou talvez isso não passasse de uma hipótese minha, de uma ilusão perversa que não tinha consistência e não poderia jamais ser comprovada. O facto é que eu via a questão de forma subjectiva e sentia por ela uma paixão crescente, que me nublava os sentidos, tal como a bruma espessa pode bloquear a visão da distância. E era no meio de um nevoeiro pesado que sentia o meu espírito: como se o mundo fosse agora um pântano denso e fétido, onde tentava encontrar um rumo novo para o meu futuro. Até que ponto ela mudara? Mas podia mudar? A questão não me saía da cabeça, as perguntas eram como brasas numa fogueira mortiça. Sim, agora estava mais interessada no destino que lhe calhara, como se de repente tivesse obtido uma consciência precisa da realidade resultava de milhões de acasos, como se de repente brotasse uma chama na lagoa fria da sua alma incompreensível. Estava na hora do jantar, ela escolhera um vestido de cor neutra, antiquado, talvez dos anos sessenta do século XX, com saia curta, que exibia as seus pernas perfeitas. E os meus pensamentos em delírio divagavam sobre a beleza, o futuro, as emoções e a serenidade, sobre o mistério e o tempo. Tudo o que sentia parecia vir de fora, pelo que pensei, num instante passageiro, que talvez nada daquilo fosse autêntico. O fato que tinham deixado no quarto assentava-me com precisão, incluindo os ombros poucos largos. Observei-me ao espelho: tinha um ar digno, mas eu era um exemplar imperfeito da minha espécie, pálida imagem da humanidade, pelo menos em comparação com ela, Norma, que tinha uma beleza do outro mundo. Dei-lhe o braço, descemos.
Norma parecia mais vulnerável. Sentara-se na poltrona, muito direita e quieta, como se pensasse intimamente em dilemas profundos. Tinha os olhos fixos na sua própria imagem no espelho. E ao observá-la de fora, reflecti, com nitidez, que ela não se agarrava à vida à minha maneira, pois eu nem precisava da consciência para me prender a cada novo sopro de ar. O que seria para ela existir? Não era apenas experimentar a passagem do tempo, a respiração, o instante seguinte, a sequência dos dias e dos movimentos, o pensamento seguinte, nada disso, de súbito era tudo mais vasto, havia outros horizontes, a preocupação de entrar totalmente na eternidade daquele momento, a vibração de cada fibra do corpo, a imortalidade do eu no instante efémero.
E fomos conduzidos pelo primeiro empregado através de longos corredores, depois por escadarias, e avistámos salões e figuras isoladas, todas em traje formal ou vestidos esplendorosos, com aspecto de modelos dos anos 20. Por todo o edifício do antigo sanatório soavam ecos de um ambiente de festa, mas a agitação era ainda vaga e distante. A decoração das paredes pareceu-me misturar estilos, um pouco de tudo, na realidade, mas sobretudo imitações de impressionistas, brilhantemente executadas. Muito discretos, alguns trabalhadores reparavam a parede de uma escadaria, enquanto passavam, imperturbáveis, vários falsos hóspedes. Mas quando nós começámos a subir os degraus, os operários pararam a sua tarefa e começaram a arrumar o equipamento. O nosso quarto, virado para as traseiras, ficava no fundo de uma ala do segundo andar, era espaçoso e tinha o tecto trabalhado com motivos arte nova. A janela grande estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca; lá fora, ouvia-se o marulhar do arvoredo e tive a sensação de viajar a bordo de um grande paquete intercontinental. Na parede, em frente à cama larga, havia um pequeno quadro de Edouard Vuillard, mulher a coser em frente a um jardim. Fiquei algum tempo a observar a pintura, só depois decidi mudar de roupa, tomar um duche. Estava cansado; da viagem, da ansiedade, da fuga precipitada, mas ali sentia-me em segurança. Imaginava que ninguém nos poderia encontrar durante pelo menos alguns dias.
À primeira vista, pareceu-me uma construção feita de cristal, recortada contra um céu que empalidecia. Só quando parei o carro olhei para Norma, que estava a meu lado, sem expressão, muito serena, sem mostrar alívio pelo sucesso da nossa viagem, sem mostrar receio pelos perigos, sem mostrar nada, excepto que me pareceu ter os olhos azuis cheios de ternura, embora isso só pudesse ser ilusão dos meus sentidos transtornados. Saímos do automóvel. Senti um ligeiro, ténue orgulho por ter concluído a difícil condução. E, depois, olhei com mais atenção para o edifício iluminado, que era maior ainda do que me tinha parecido: havia qualquer coisa de consumido e doentio naquele casarão. Os torreões do castelo recortavam-se no céu estrelado e havia em torno uma aura de energia, como se a luz fosse uma respiração estranha daquele colosso. O motor da viatura calara-se e por um instante absorvi o silêncio, saboreando a atmosfera cristalina do lugar. Levei algum tempo a dar-me conta de que a floresta murmurava uma canção melancólica: pairava um frio ligeiro e senti a carícia do ar rarefeito, depois ouvi a música distante que vinha do interior do sanatório, uma valsa triste, pareceu-me. Porquê a luz? Porquê a música? E na vaga desses novos sons distingui o barulho inconfundível de vozes. Da casa saiu um vulto franzino, com ar vagamente primitivo, embora amável. Saudou-nos, a mim e a Norma, com simplicidade; depois, entreguei-lhe o pequeno saco que tirara da mala do carro. O empregado, que era de modelo estúpido, foi avançando de volta ao velho sanatório e só quando já estávamos dentro, no átrio amplo, é que surgiu o mordomo, a quem eu disse, num tom de voz que quis neutro, mas que deve ter soado como um comando: “Vinha encontrar-me com o senhor Brandes”, e mostrei-lhe o meu cartão. “Estamos ao corrente” respondeu o mordomo, e já trazia na mão uma chave de quarto. “O jantar será às oito, em traje formal”, acrescentou, excessivamente correcto e cortês. “Não trouxe roupa formal”, disse eu, sem conseguir esconder a minha ansiedade. “Não se preocupe, entregaremos dentro de meia hora, no quarto, um fato com as suas medidas e três gravatas diferentes, para o senhor escolher. A senhora tem vários vestidos disponíveis no armário”. Observei Norma, ela não reagira.
Se fosse possível conhecer e controlar a ambição, o ódio e a transgressão, seríamos talvez mais felizes, embora não fôssemos exactamente aquilo que verdadeiramente somos. Porque decidi fugir, em vez de aceitar o fio do destino? Não sei responder a esta pergunta, mas talvez tenha reagido segundo ditava o meu orgulho, que é um dos defeitos mais evidentes da condição humana, ou talvez a explicação esteja numa característica pessoal de não gostar de me submeter, detestar o conformismo, querer explorar todas as oportunidades da vida até chegar ao âmago de cada coisa, deambulando sem rumo nesta minha inquietação permanente. Resisti, não podia ter feito de outra forma. De repente, via-me naquela estrada, nos limites: cada nova curva era invisível até ao último instante, depois ali estava de novo o abismo, a ameaça do último erro. Quase hipnotizado pelo tom espectral do arvoredo que os faróis iluminavam, conduzira o carro num guincho de pneus, montanha acima, com o motor a rugir no máximo esforço. O caminho era uma linha negra que mal se avistava na monotonia da floresta, subindo em ondulação abrupta e a tal velocidade, que os pinheiros crepusculares pareciam formar um padrão de papel. Pareceu-me uma eternidade até chegarmos ao topo da serra, até que sem aviso, a estrada atravessava um muro, havia um portão aberto e entrei loucamente numa longa alameda de plátanos. Só então se avistava o edifício do sanatório, repleto de luz, que se erguia no crepúsculo como um navio fantasma.
Se eu não passasse de um desejo, da meditação de uma máquina, de simples hipótese de existência? Por vezes, dou comigo a pensar nestes mistérios, nos enigmas do tempo, nos acasos da ausência e naquilo que se vai transformando em distância, como se houvesse na mais simples essência algo que nos é retirado da alma e deixado em estado de cinza. As minhas memórias diluem-se numa espécie de névoa, embaraçosas e grotescas. Talvez elas nem existam verdadeiramente. Se não pensar, esqueço-me de quase tudo, como se não tivesse vivido. O somatório de momentos fragmentados será talvez um prolongado sonho que não deixa qualquer rasto do que se sonhou, apenas a impressão de ter sonhado, de ter dormido, de andar às voltas na cama, tentando dormir ainda mais intensamente e sonhar ainda mais profundamente, apenas mais um pouco. Assim, o que vivi pode não ter sido muito mais do que impressões fantasiadas por uma máquina adormecida, que desejou ter uma existência imperfeita de vida humana, inatingível, quase sem se aperceber que saía da sua condição inanimada numa catadupa de breves momentos efémeros, tal qual a poeira das estrelas.