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viagem da imaginação
E fomos conduzidos pelo primeiro empregado através de longos corredores, depois por escadarias, e avistámos salões e figuras isoladas, todas em traje formal ou vestidos esplendorosos, com aspecto de modelos dos anos 20. Por todo o edifício do antigo sanatório soavam ecos de um ambiente de festa, mas a agitação era ainda vaga e distante. A decoração das paredes pareceu-me misturar estilos, um pouco de tudo, na realidade, mas sobretudo imitações de impressionistas, brilhantemente executadas. Muito discretos, alguns trabalhadores reparavam a parede de uma escadaria, enquanto passavam, imperturbáveis, vários falsos hóspedes. Mas quando nós começámos a subir os degraus, os operários pararam a sua tarefa e começaram a arrumar o equipamento. O nosso quarto, virado para as traseiras, ficava no fundo de uma ala do segundo andar, era espaçoso e tinha o tecto trabalhado com motivos arte nova. A janela grande estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca; lá fora, ouvia-se o marulhar do arvoredo e tive a sensação de viajar a bordo de um grande paquete intercontinental. Na parede, em frente à cama larga, havia um pequeno quadro de Edouard Vuillard, mulher a coser em frente a um jardim. Fiquei algum tempo a observar a pintura, só depois decidi mudar de roupa, tomar um duche. Estava cansado; da viagem, da ansiedade, da fuga precipitada, mas ali sentia-me em segurança. Imaginava que ninguém nos poderia encontrar durante pelo menos alguns dias.
À primeira vista, pareceu-me uma construção feita de cristal, recortada contra um céu que empalidecia. Só quando parei o carro olhei para Norma, que estava a meu lado, sem expressão, muito serena, sem mostrar alívio pelo sucesso da nossa viagem, sem mostrar receio pelos perigos, sem mostrar nada, excepto que me pareceu ter os olhos azuis cheios de ternura, embora isso só pudesse ser ilusão dos meus sentidos transtornados. Saímos do automóvel. Senti um ligeiro, ténue orgulho por ter concluído a difícil condução. E, depois, olhei com mais atenção para o edifício iluminado, que era maior ainda do que me tinha parecido: havia qualquer coisa de consumido e doentio naquele casarão. Os torreões do castelo recortavam-se no céu estrelado e havia em torno uma aura de energia, como se a luz fosse uma respiração estranha daquele colosso. O motor da viatura calara-se e por um instante absorvi o silêncio, saboreando a atmosfera cristalina do lugar. Levei algum tempo a dar-me conta de que a floresta murmurava uma canção melancólica: pairava um frio ligeiro e senti a carícia do ar rarefeito, depois ouvi a música distante que vinha do interior do sanatório, uma valsa triste, pareceu-me. Porquê a luz? Porquê a música? E na vaga desses novos sons distingui o barulho inconfundível de vozes. Da casa saiu um vulto franzino, com ar vagamente primitivo, embora amável. Saudou-nos, a mim e a Norma, com simplicidade; depois, entreguei-lhe o pequeno saco que tirara da mala do carro. O empregado, que era de modelo estúpido, foi avançando de volta ao velho sanatório e só quando já estávamos dentro, no átrio amplo, é que surgiu o mordomo, a quem eu disse, num tom de voz que quis neutro, mas que deve ter soado como um comando: “Vinha encontrar-me com o senhor Brandes”, e mostrei-lhe o meu cartão. “Estamos ao corrente” respondeu o mordomo, e já trazia na mão uma chave de quarto. “O jantar será às oito, em traje formal”, acrescentou, excessivamente correcto e cortês. “Não trouxe roupa formal”, disse eu, sem conseguir esconder a minha ansiedade. “Não se preocupe, entregaremos dentro de meia hora, no quarto, um fato com as suas medidas e três gravatas diferentes, para o senhor escolher. A senhora tem vários vestidos disponíveis no armário”. Observei Norma, ela não reagira.