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viagem da imaginação
Caminhando no grande salão, passaram três figuras que se destacavam. Sombart apresentou os cavalheiros, disse-lhes quem eu era, e apresentou-lhes Norma, como se eles não soubessem quem ela era. O que parecia ser o mais importante chamava-se Professor Newton e os outros três eram menos relevantes, o médico de Brandes e o arquitecto responsável pelas colecções de livros. Este último, Palmer, tinha um trabalho extravagante de juntar colecções que nem deviam interessar ao proprietário do sanatório (livros de arte, romance francês do século XVIII, um núcleo de raridades sobre impérios extintos do Médio Oriente). Tinha outra função, a de reunir artefactos para o ‘museu do futuro‘. “Temos de lhe fazer uma visita guiada”, disse-me Palmer. Senti curiosidade e pensei que talvez encontrasse ali algumas curiosidades, mas optei por fazer uma conversa superficial, a picar Palmer com a inutilidade do seu trabalho. Para que servia reunir livros que ninguém precisava de ler, perguntei. Os textos podiam ser consultados em formatos digitais e os volumes em si não podiam de forma nenhuma interessar a Brandes, que tinha fama de ser um milionário excêntrico, mas pouco dado a coisas do espírito. Fazer aquela crítica na casa do homem que me podia ajudar foi uma imbecilidade, mas o meu interlocutor não levara a mal, pelo contrário, pareceu-me encantado com a possibilidade de justificar a sua tarefa: “Muitos novos-ricos criam colecções de livros com o objectivo de surpreender os visitantes ocasionais, mas esse nem é o caso de Brandes”. Palmer fez uma pausa, pareceu procurar a formulação correcta, só depois continuou: “Brandes é famoso por evitar os holofotes e o público, apesar de muitos famosos serem visita regular. O senhor não é famoso, mas tem uma boa recomendação e é nosso hóspede devido à sua situação particular. Garanto-lhe: a colecção de livros de Brandes é um genuíno esforço para salvar património da humanidade”.
A sala principal, de onde vinha toda a animação, parecia uma estação ferroviária. Estavam talvez trinta figuras e era difícil perceber o que faziam ali. Havia criados de libré e grupos de cerimónia em amena conversa. Andei por ali um bocado, sentindo a alcatifa e os olhares discretos. Agarrei um copo de vinho tinto e olhei, fascinado, para a colecção de pinturas. Sobre a chaminé, estava uma magnífica obra dominada por um céu de um profundo azul. Fiquei um pouco a contemplar o quadro e deixara de me preocupar com Norma, até ao momento em que ela interrompeu o nosso silêncio: “Nicolas Poussin, o funeral de Fócion”, disse ela.
“O quê?”
“O nome do quadro e do pintor. É uma cópia”. Nunca imaginara que ela pudesse saber alguma coisa sobre pintura, mas era natural que soubesse. No fundo, desconhecia os seus talentos. Foi mais ou menos nessa altura que se aproximou de nós um sujeito magro e elegante, obviamente funcionário, pelo menos assim o defini no meu íntimo, pois estava rodeado de funcionários, e parecia bizarro que estivessem a simular uma festa onde eu era o único verdadeiro, autêntico, convidado. O tipo apresentou-se, disse que se chamava Sombart. Sabia tudo sobre a nossa situação, cumprimentou-me com suavidade, o que não era apenas uma pose mecânica, mas algo de profundamente estudado e que tinha certa nobreza (sei que a frase pode parecer absurda, mas sim, esta é a expressão mais exacta). Intrigava-me a festa. Queria falar sobre Brandes, mas desviei o assunto: “Fale-me das pinturas...”, pedi. “São cópias”, respondeu Sombart. “O nosso especialista fabrica os pigmentos, prepara telas com fibras envelhecidas e usa uma técnica idêntica à do pintor original, até na pressão do próprio pincel ou a rapidez do movimento. Todos os quadros são iguais aos que pode encontrar no museu. O nosso mestre reproduz qualquer período. Enfim, se prefere uma explicação mais exacta, digamos que a luz reflectida pelas telas é idêntica à dos originais e, portanto, o seu efeito emocional deverá ser o mesmo”.
“Se não fossem falsos valeriam milhões”, disse eu.
“São reproduções exactas, nas cores, nos pigmentos, nas formas, nos próprios cheiros, a sensação é a mesma de se olhar para o original. Mas, enfim, estão aqui para serem vistos”, explicou Sombart, com o que me pareceu ser um toque de petulância, acrescentando de imediato: “Já viu o Bruegel? É magnífico”. Mostrou esse quadro e outros: tinham um Rembrandt, um Turner e vários impressionistas. Sombart conduzia-me pelo grande salão, onde passeavam outras figuras elegantes e perfeitas, imitando cavalheiros e senhoras, segurando na mão copos de vinho, outros fingindo conversar, como se aguardassem a sua vez de participar naquele teatro. Entre eles, esvoaçavam empregados de baixa hierarquia, distribuindo vinho e canapés.