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Novela incompleta (6)

por Luís Naves, em 03.05.16

A sala principal, de onde vinha toda a animação, parecia uma estação ferroviária. Estavam talvez trinta figuras e era difícil perceber o que faziam ali. Havia criados de libré e grupos de cerimónia em amena conversa. Andei por ali um bocado, sentindo a alcatifa e os olhares discretos. Agarrei um copo de vinho tinto e olhei, fascinado, para a colecção de pinturas. Sobre a chaminé, estava uma magnífica obra dominada por um céu de um profundo azul. Fiquei um pouco a contemplar o quadro e deixara de me preocupar com Norma, até ao momento em que ela interrompeu o nosso silêncio: “Nicolas Poussin, o funeral de Fócion”, disse ela.

“O quê?”

“O nome do quadro e do pintor. É uma cópia”. Nunca imaginara que ela pudesse saber alguma coisa sobre pintura, mas era natural que soubesse. No fundo, desconhecia os seus talentos. Foi mais ou menos nessa altura que se aproximou de nós um sujeito magro e elegante, obviamente funcionário, pelo menos assim o defini no meu íntimo, pois estava rodeado de funcionários, e parecia bizarro que estivessem a simular uma festa onde eu era o único verdadeiro, autêntico, convidado. O tipo apresentou-se, disse que se chamava Sombart. Sabia tudo sobre a nossa situação, cumprimentou-me com suavidade, o que não era apenas uma pose mecânica, mas algo de profundamente estudado e que tinha certa nobreza (sei que a frase pode parecer absurda, mas sim, esta é a expressão mais exacta). Intrigava-me a festa. Queria falar sobre Brandes, mas desviei o assunto: “Fale-me das pinturas...”, pedi. “São cópias”, respondeu Sombart. “O nosso especialista fabrica os pigmentos, prepara telas com fibras envelhecidas e usa uma técnica idêntica à do pintor original, até na pressão do próprio pincel ou a rapidez do movimento. Todos os quadros são iguais aos que pode encontrar no museu. O nosso mestre reproduz qualquer período. Enfim, se prefere uma explicação mais exacta, digamos que a luz reflectida pelas telas é idêntica à dos originais e, portanto, o seu efeito emocional deverá ser o mesmo”.

“Se não fossem falsos valeriam milhões”, disse eu.

“São reproduções exactas, nas cores, nos pigmentos, nas formas, nos próprios cheiros, a sensação é a mesma de se olhar para o original. Mas, enfim, estão aqui para serem vistos”, explicou Sombart, com o que me pareceu ser um toque de petulância, acrescentando de imediato: “Já viu o Bruegel? É magnífico”. Mostrou esse quadro e outros: tinham um Rembrandt, um Turner e vários impressionistas. Sombart conduzia-me pelo grande salão, onde passeavam outras figuras elegantes e perfeitas, imitando cavalheiros e senhoras, segurando na mão copos de vinho, outros fingindo conversar, como se aguardassem a sua vez de participar naquele teatro. Entre eles, esvoaçavam empregados de baixa hierarquia, distribuindo vinho e canapés.



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