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O Chiado de ontem

por Luís Naves, em 12.01.16

Alguma avaria fizera parar as escadas rolantes, que são antiguidades, e tive de subir a pé, a perder o fôlego. Subi penosamente. Lá em cima, observei à volta, tentando perceber os detalhes daquele museu vivo. Alguns jovens conversavam em algazarra na base da estátua do poeta Chiado; eram anarquistas mal lavados e de longas tranças, acompanhados de pequenos cães acrobatas; e havia turistas sentados na esplanada da brasileira, como se estivessem na plateia do antigo São Carlos a ouvir uma cantora gorda; e uma mulher abraçava um Fernando Pessoa de bronze, em pose sorridente para a fotografia; levava uma recordação desta cidade lírica... Havia bandos de transeuntes por ali a pastar numa pacatez pastoril e os outros eram figurões verdadeiramente parados e que pareciam esperar em vão alguma coisa. A luz oblíqua do final de tarde iluminava as costas de Camões, o sol dourado entrava pela rua Garrett e inundava as vitrinas das velhas lojas de antiquários, transformando a calçada branca num grande espelho. Por todo o lado havia sinais de decadência, cenário de teatro, a caca dos pombos, as paredes podres e manchadas, o bolor cobrindo o país de fachada. Juntei-me aos que esperavam, mãos nos bolsos, a gabardina a deixar entrar um agudo golpe de vento; permaneci meio distraído, a olhar as caras; disformes, quase todas. Como são feias as pessoas de verdade, foi o que pensei, pois naquela tarde via sobretudo os defeitos, o medo caramelizado e a dúvida nos olhares furtivos, a pasmaceira das ideias repetidas, as vidas sem beleza, arrastando-se por vielas de agonia, ora acordadas, ora a dormir. Era como se cada pessoa transportasse um pesado fardo com todas as suas recordações, à maneira de tralha inútil. E pensei: levamos connosco a vida que temos e todos os objectos desnecessários que pertencem a essa vida e que, depois de nós, serão igualmente desnecessários.



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