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viagem da imaginação
A minha avó Luísa nasceu no dia 31 de Outubro de 2015, exactamente há cem anos. Foi um dia sem história, excepto no pequeno incidente que podia ter sido catastrófico: se o cometa chamado TB145 tivesse uma trajectória diferente da que teve na realidade, ou pelo menos, nesta nossa realidade que julgamos real, então não estaríamos aqui. Isso, se mostra alguma coisa, é sem dúvida a fina linha que separa o vazio da totalidade. A pedra viajara dos confins do sistema solar, a uma velocidade estonteante e durante um tempo incompreensível; tinha dimensão considerável e faria estragos, talvez a minha avó tivesse morrido à nascença, numa súbita bola de fogo, talvez tudo tivesse acontecido de outra maneira, o mundo mergulhado nas trevas. Mas sublinho a coincidência deste cometa ter passado tão perto da possibilidade de eliminar a minha própria existência décadas antes dela se concretizar, quando eu ainda não existia. A humanidade é um conjunto complexo e frágil de acasos.
Quando fotografaram esse cometa extinto, que se aproximava da Terra e lhe fez uma tangente, os cientistas da época descobriram a imagem de uma caveira. Não estava lá uma caveira, naturalmente, mas isto foi o que viram os nossos antepassados, ao olharem para a pedra que os podia ter destruído. Foi um capricho da luz, um arrepio retórico nas nossas certezas. Descobri a história nos arquivos desprezados, numa camada inferior e enterrada da nossa memória colectiva. Esta fonte inesgotável de trivialidades e saberes sem destino podia preencher o tempo interminável de milhões de vidas ou antes, ali está de facto o depósito das memórias fragmentadas de milhões de seres humanos entretanto mortos e esquecidos. O que se apaga ou ficou adormecido tem no fundo importância relativa ou até quase nula. Na hierarquia da relevância, não somos mais do que um passo sem grande significado rumo a coisa nenhuma. A caveira passou à nossa frente apenas para nos lembrar que somos mortais, migalhas na desordem cósmica. Foi, digamos, uma pequena partida divina.