Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
viagem da imaginação
Descobri na Biblioteca Nacional um escritor esquecido, meu homónimo e que viveu há cem anos. Esse Luís Naves (assim se chamava, exactamente como eu) publicou vários livros no início do século XXI, embora só tenha sobrevivido um volume. Descobri-o por acaso e fui o seu primeiro leitor em 32 anos. O nome é coincidência, não existindo relação familiar entre nós, e o pouco que sei dele é mais ou menos o seguinte: em 2009, este meu homónimo publicou um romance chamado Territórios de Caça, sendo o único da sua autoria que sobreviveu aos anos do Grande Vandalismo da década de 30, quando parte da biblioteca foi destruída pela rebelião anti-tecnológica. Há referência a outros títulos, mas perderam-se. A leitura é hoje penosa para quem não se interesse por livros antigos; o estilo antiquado, o assunto ininteligível. Nem sequer entendi o que pretendia este Luís Naves com as suas divagações.
Na definição clássica, a literatura é de cada época, e ali estamos perante um exemplo típico, onde o autor é prisioneiro do seu tempo. No romance que citei, imagina-se a vida numa sociedade diferente, mas não se entende bem a intenção. A prosa é pesada, com referências culturais hoje incompreensíveis. Restam farrapos de informação sobre esta personagem: foi jornalista (encontrei artigos da década de 90 do século XX, mas os assuntos pareceram-me datados). O pouco material que não se perdeu no vandalismo soma uns vinte textos.
Só posso especular, quando penso na existência deste escritor esquecido, mas encontrei acidentalmente uma pequena imagem cuja legenda esclarecia que Luís Naves (que era um tipo forte, de óculos, barba branca) estava ao lado do poeta João Villalobos, cuja imagem se reconhece perfeitamente. Não sei se os dois seriam amigos, mas cruzaram-se pelo menos nessa ocasião. Trata-se do Villalobos em que estão a pensar, cuja obra admiro e que tem outra ligação à minha vida, pois moro a dois quarteirões do parque com o seu nome, com os tranquilos jardins japoneses que parecem pequenos poemas. A propósito, será hoje o 149º aniversário do nascimento do poeta João Villalobos. E foram estas as pistas que descobri, o que não me impede de pensar que talvez esse Luís Naves fosse um pseudónimo ou nome inventado. Que importa se existiu? Afinal, quantas vidas deixam rasto?
No início do século XX, os intelectuais eram idealistas, acreditavam na igualdade, na revolução, na mudança, num universo contido e bem menos extenso, onde o ser humano dominava. Havia crença absurda no futuro, o que não impediu um resto de século bem amargo
Os artistas perderam as ilusões e, no início do século XXI, pelo menos para os escritores, o mundo começava a parecer incerto: a ruralidade desaparecera, a sociedade antiga extinguira-se, a ninguém passava pela cabeça viver em regimes de autoridade. As literaturas nacionais diluíram-se num grande corpo global. O excesso de crença era associado à intolerância e as pessoas mergulharam na adoração do dinheiro e da tecnologia. Instalou-se a superficialidade e triunfou o irreal.
Cem anos depois, os intelectuais continuam este caminho da degradação dos valores sólidos em que acreditavam os nossos antepassados de 1900, com certo cinismo na análise e menor importância das ideologias, dos sentimentos e da religião. Hoje, aceita-se a diferença, apesar do princípio de todos gozarem de certos direitos mínimos, ou seja, existe igualdade perante o Estado, mas desigualdade em tudo o resto. Triunfa a adoração do corpo e da beleza, as culturas fundem-se numa amálgama mestiça, a melhor arte é produzida em tempos de decadência.
Em 2115, as utopias já morreram por completo e vivemos na era do desencanto, dentro de um pessimismo cansado, errático e fantástico, com menos convicções e menos violência. A incerteza na estabilidade é, afinal, uma estranha forma de viver, e talvez isso explique a nostalgia. O nosso século XXII não tem revoluções nem guerras e, no entanto, todos os horizontes nos parecem sombrios. A história aquietou, adormeceu. Deixámos de acreditar no homem como divindade e habitamos o excesso, pois sabemos que o tempo se esgota, que a própria linguagem já não pode traduzir este desassossego estéril que nos rodeia.
A minha avó Luísa nasceu no dia 31 de Outubro de 2015, exactamente há cem anos. Foi um dia sem história, excepto no pequeno incidente que podia ter sido catastrófico: se o cometa chamado TB145 tivesse uma trajectória diferente da que teve na realidade, ou pelo menos, nesta nossa realidade que julgamos real, então não estaríamos aqui. Isso, se mostra alguma coisa, é sem dúvida a fina linha que separa o vazio da totalidade. A pedra viajara dos confins do sistema solar, a uma velocidade estonteante e durante um tempo incompreensível; tinha dimensão considerável e faria estragos, talvez a minha avó tivesse morrido à nascença, numa súbita bola de fogo, talvez tudo tivesse acontecido de outra maneira, o mundo mergulhado nas trevas. Mas sublinho a coincidência deste cometa ter passado tão perto da possibilidade de eliminar a minha própria existência décadas antes dela se concretizar, quando eu ainda não existia. A humanidade é um conjunto complexo e frágil de acasos.
Quando fotografaram esse cometa extinto, que se aproximava da Terra e lhe fez uma tangente, os cientistas da época descobriram a imagem de uma caveira. Não estava lá uma caveira, naturalmente, mas isto foi o que viram os nossos antepassados, ao olharem para a pedra que os podia ter destruído. Foi um capricho da luz, um arrepio retórico nas nossas certezas. Descobri a história nos arquivos desprezados, numa camada inferior e enterrada da nossa memória colectiva. Esta fonte inesgotável de trivialidades e saberes sem destino podia preencher o tempo interminável de milhões de vidas ou antes, ali está de facto o depósito das memórias fragmentadas de milhões de seres humanos entretanto mortos e esquecidos. O que se apaga ou ficou adormecido tem no fundo importância relativa ou até quase nula. Na hierarquia da relevância, não somos mais do que um passo sem grande significado rumo a coisa nenhuma. A caveira passou à nossa frente apenas para nos lembrar que somos mortais, migalhas na desordem cósmica. Foi, digamos, uma pequena partida divina.