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Se a magoei, não me posso perdoar...

por Luís Naves, em 20.01.16

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Estou cada vez mais preocupado com a história do outro eu. Começou a desaparecer dinheiro das minhas contas bancárias, o que implica algo de inexplicável, já que ninguém pode imitar a minha retina. Como é possível tal acontecimento, excepto se for eu próprio a sacar o dinheiro, sem me lembrar depois do que fiz? Terei assim uma vida clandestina que, embora seja vivida, é logo apagada da minha própria memória?

Ando doido com estes pensamentos e recordo-me do medo que senti na alucinação que contei aqui no meu diário, quando me pareceu ver alguém igual a mim, mas que era obviamente um delírio da imaginação ou uma impressão sonhada que me pareceu concreta. Terei existência dupla? Mas não é possível uma amnésia assim, ou teria de me lembrar pelo menos de uma parte dos meus dias clandestinos: haveria sempre rastos, pequenas memórias persistentes, mas não há nada disso: os meus dias passam-se em rotina de leitura, na escrita do diário, no silêncio da minha casa, na solidão do nosso tempo. Parece que não me acontece nada.

No final, pouco lembro daquilo que faço, mas o sentimento de inutilidade é diferente da ideia de uma parte de mim existir num plano que não recordo. Esse outro sai de minha casa e tira dinheiro da minha conta, mas devo ser eu, pois a segurança dos pagamentos é absoluta. Se houvesse outro eu dentro de mim, a minha robô, Norma, avisava-me e convencia-me a procurar ajuda. O facto é que esse outro esteve numa festa e insultou pessoas, fazendo-se passar por mim, mas devia ser eu, pois toda a gente me reconheceu dessa forma. Ontem, soube uma coisa ainda mais alarmante: uma das pessoas insultadas no episódio foi a minha infeliz amiga, Laura, o meu amor platónico e puro. Não conheço ainda os pormenores do que lhe sucedeu (do que nos sucedeu), não tenho a mínima recordação e os que podem explicar recusam-se a atender os meus telefonemas: na última vez que vi Laura, à beira rio, dissemos adeus com a mesma profunda amizade de sempre. Laura não é bonita, longe disso, mas é a pessoa mais humana que conheço, uma alma delicada, incapaz da agressividade, do sarcasmo, do ciúme. Que lhe terei eu feito? Se a magoei, não me posso perdoar.

Uma notícia incompreensível

por Luís Naves, em 18.01.16

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Tenho andado isolado, metido nas minhas rotinas na biblioteca pública, a ler livros que ninguém requisitou durante décadas. Ontem, a caminho da biblioteca, encontrei na rua um conhecido e, no meio da conversa, ele disse uma coisa estranha: que nos tínhamos encontrado em determinada festa e eu fizera ali uma figura, enfim, ele não quis colocar a questão dessa forma, mas entendi que teria sido uma triste figura. Fiquei perplexo, tentei esclarecer logo ali a insinuação, julguei que ele teria ouvido uma história mal contada, talvez me tivesse confundido com outra pessoa, mas não, este meu conhecido insistiu na sua história: vira-me na festa, ainda em estado de sobriedade, mas já a falar demasiado alto e a mostrar uma conduta incorrecta; ele hesitou na palavra, não me queria ofender, começou por dizer que fora inconveniente na ocasião, depois fiz-lhe algumas perguntas e, pelas respostas, entendi que a minha atitude fora anormal e até ofensiva em relação aos outros convidados. O resto do relato era uma versão do que acontecera depois de ele sair do local: o meu comportamento degenerara em incorrecção ébria, depois em violência. Assegurei-lhe que nunca estivera nessa festa, que se tratava de um erro, mas o meu conhecido não aceitou a explicação: “Estive mesmo ao seu lado, assisti a uma parte da conversa em que tratou muito mal uma senhora, você estava bastante exaltado”. Deu a entender que não percebia a falta de coragem em assumir o que se fizera e despedimo-nos secamente, ele a ponderar na minha duplicidade, eu seguindo o meu caminho com a alma angustiada. Alguém garantia a pés juntos que me vira num local onde nunca estivera. Como era isso possível? E admiti, por um instante, que se passava algo de inquietante, talvez me tivesse transformado numa personalidade dividida, a parte lúcida sem noção do que fazia a monstruosa.

Aparição

por Luís Naves, em 10.01.16

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Assustei-me ao ver aquela figura pálida a caminhar na minha direcção, sorrindo de forma que me pareceu perversa. De súbito, via à minha frente a minha própria imagem ao espelho, mas não havia espelho algum entre nós, aquela era apenas uma pessoa igual a mim, ou o que me pareceu ser uma pessoa, enfim, não era sonho, embora o episódio pudesse tratar-se de alucinação, de um erro da minha parte, do efeito da bebida (sim, confesso, bebera demasiado nessa noite). E a imagem ao espelho não era isso, pois a minha cicatriz na testa fica sempre do lado direito quando me olho ao espelho e, no caso deste estranho silencioso, estava claramente à esquerda a mesma cicatriz que eu tenho. E, quando me refiz do susto, vendo claramente que alguém igual a mim me observava com curiosidade e em silêncio, tentei falar e apenas me ocorriam palavras inúteis, incapazes de traduzir o meu espanto. A cena durou poucos segundos. Depois, tão depressa como aparecera, o homem mergulhou de novo nas sombras, num nevoeiro que a pálida luz dos escritórios ainda iluminava tenuemente. Enquanto na boca do estômago sentia uma poderosa náusea, comecei a imaginar que esse outro semelhante a mim teria uma existência própria e devia, por isso, conhecer as pessoas que eu conhecia. Talvez isso explicasse a estranheza com que alguns amigos agora me recebem, como se testemunhassem a aparição de um fantasma.

Sonho lento

por Luís Naves, em 02.12.15

Faz-me impressão pensar naquelas pessoas que gastaram o bem precioso e raro da vida a perseguir quimeras de orgulho e vaidade. Acabaram todas da mesma maneira, primeiro como más memórias, depois no esquecimento. Porventura será demasiado tarde, mas a humanidade tende para o aperfeiçoamento, pois que a ‘bondade’ não é sobretudo um valor, antes uma estratégia de sobrevivência capaz de prolongar a nossa duração por umas centenas de milhares de anos ou porventura uns milhões. Enfim, algures no futuro, a nossa espécie irá extinguir-se também, como acontece com todas as espécies, que podem em certo ponto da sua existência perder a vitalidade necessária à luta pela vida, a extinção pelo desinteresse, que é uma mera hipótese de longevidade, perante a alternativa da extinção pelo excesso. Um dia, seremos todos esquecimento e, depois, as civilizações humanas deixarão de existir, ficando apenas as suas ruínas engolidas pela paisagem. E a própria espécie humana desaparecerá nas camadas inferiores, apagando-se os seus rastos, o que pensaram e escreveram em vão tantas pessoas, o que aprenderam e construíram, até que um dia o próprio planeta Terra será incinerado na sua órbita, isto antes do sistema solar se extinguir, para dar lugar a uma próxima geração de estrelas que, por sua vez, brilhará durante biliões de anos, antes de se apagar por seu turno, na prolongada noite do universo, a chamada eternidade, que talvez não seja muito mais do que o sonho lento de um deus indiferente.

O regresso da moda barroca

por Luís Naves, em 07.11.15

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O estilo barroco está de novo na moda. Casanova, Voltaire e Mozart fascinam os intelectuais e os estilistas. As pessoas gostam de imitar a volubilidade e o erotismo desse tempo de 1700 e tal, a leveza e o espírito, a elegância e a fineza. A nossa época imita muitos aspectos do barroco, na maneira de vestir, por exemplo: reapareceram as cores vistosas, as camisas com folhos e mangas rendadas, as calças justas e os casacos longos com cintura fina, sobre um colete que faz sobressair o peito. A única diferença é que a moda feminina do século XVIII seria hoje impossível de repetir, pois as mulheres vestem-se como os homens.

Não temos duelos, é claro, mas a melhor analogia é social, pois somos dez por cento de sofisticados, que vivem numa bolha de conforto, entre festas, solenidade e espectáculo. A nossa vida é idêntica à da corte do Rei Sol, alheada de tudo o resto, apreciando o esplendor e a indolência. Hoje não há reis nem impérios, votamos e escolhemos os líderes, mas os actuais privilegiados são apenas um décimo do total: os refugiados, os deslocados e as máquinas não votam. Como acontecia durante o antigo regime, a nova aristocracia de cidadãos vive das rendas fixas, enriquece ainda mais especulando com a sua fortuna, e nunca cai na pobreza, pois o estado garante o conforto mínimo e a protecção das falências.

A comparação só é abusiva quando pensamos que a aristocracia do século XVIII foi varrida pela revolução, sabendo nós que a maioria proletária, a dos robôs, jamais produzirá uma mudança política. No entanto, a História também ensina que as elites que conseguem criar formas de poder estratificadas acabam por estagnar em posições inflexíveis, deixam de ter incentivo para lutar, envelhecem no posto, por assim dizer, formando super-elites, la crème de la crème, como se convencionou dizer sobre esta gente que se distinguiu antes de aparecer a civilização burguesa.

A minha insistência em coisas velhas

por Luís Naves, em 04.11.15

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Os meus amigos dizem que sou diletante, por me interessar tanto pelo passado, mas considero que existe uma crise de memória e que o nosso desinteresse pelas trivialidades dos velhos tempos é uma forma de complacência em relação ao futuro. Ontem, ao tomar chá com a Laura, não sei qual foi a razão, comecei a falar dos veículos de antigamente e, a certo ponto, expliquei que os nossos bisavós tinham automóveis. A Laura fez uma expressão de perplexidade, encolheu os ombros, disse que isso era natural, que havia carros. Interrompi-a e expliquei que eles os compravam. Ela olhou para mim, incrédula, disse que isso não fazia sentido. Obrigou-me a uma explicação detalhada: os nossos antepassados compravam as máquinas e conduziam-nas eles próprios; era um símbolo de estatuto. Expliquei que havia fábricas imensas, companhias com milhões de trabalhadores, que as pessoas até se endividavam para adquirir esses veículos. Para meu espanto, Laura desatou a rir-se.

A história era absurda, disse Laura, já que as pessoas podiam chamar um carro automático e ir para qualquer sítio por valores insignificantes, bastava dar a direcção à máquina e ela ia sozinha. Como era possível conduzir o meio de transporte de outra forma? Aquela resistência tornou-me pedante e fiz uma dissertação que a aborreceu de morte. Mostrei-lhe imagens de velhos automóveis e expliquei que se conduziam as máquinas mexendo num volante, no lugar da frente. Havia motoristas profissionais, milhões deles. Estes condutores humanos mostravam inabilidade natural e morria muita gente em acidentes de estrada. Laura ficou boquiaberta, mas a sua atenção foi esmorecendo. Senti que estava a ser um inaturável chato, a falar das velhas marcas, das diferenças estilísticas, do papel social daquela indústria. Às tantas, ela perdeu a paciência, sobretudo quando expliquei que os motores eram poluentes e usavam combustíveis fósseis. Perguntou: ora, porque é que eles não faziam carros eléctricos? Depois, já visivelmente impaciente, insistiu na questão da condução automática. Não respondi, percebi que a minha conversa era enfadonha. Para não a maçar, fui desviando para outros temas, mas fiquei a pensar que talvez esteja errado em insistir tanto nestas coisas mortas.

Os tecidos da emoção

por Luís Naves, em 03.11.15

Hoje encontrei-me com Laura. Passeámos sem destino durante uma hora. Estivemos à beira do rio, a ver a agitação fluvial. Havia na margem um vento robusto, mas não desagradável. As casas flutuantes, no meio da água, davam um toque de cor e ao fundo erguiam-se as torres de Almada; então, entre as nuvens, irrompeu um sol que banhou a ouro o casario da velha cidade. Lisboa respirava glória. Tudo aquilo era poético e ficámos em silêncio a contemplar aquela visão da beleza. Há laços entre as nossas duas almas, sei disso, mas a Laura tem a vida dela e eu tenho a minha, ou melhor: existe uma distância entre nós que as convenções impõem, não obstante o desejo submerso, que não sendo físico, é de outro patamar. Como poderia eu ser suficiente para preencher a sua existência? E ela pensará o mesmo sobre as suas insuficiências humanas. Assim, a distância preserva-nos, na nossa opção de liberdade. E fico a pensar naquilo que nos condena à solidão e que vai além das circunstâncias. Escutando o marulhar da água, entre os ruídos da agitação da cidade, por algum tempo fomos apenas nós a estar ali, isto antes de nos separarmos mais uma vez, e sentimos profundamente a presença um do outro, pelo menos assim me emocionei, percebendo no olhar dela o que me pareceram ser lágrimas de alegria, ou porventura um qualquer efeito do vento nos tecidos da emoção.


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